(Via Folha, em 07/10/2012)
De rosto redondo e bochechas fartas, o dr. Aristóteles Orsini
formou-se em medicina em 1933 pela Universidade de São Paulo. No ano
seguinte, defendeu a tese de doutorado "Fermentos Amilolíticos
Encontrados em Sementes de Leguminosas", e pouco depois assumiu a
cadeira de professor-assistente de física da Faculdade de Farmácia e
Odontologia da USP.
Em 1935, foi aprovado em concurso de livre-docência com a tese "Algumas
Constantes Físicas de Tinturas Oficinais". Chegou a chefe do Serviço de
Radiologia da Escola Paulista de Medicina. Em 1947, tornou-se
catedrático de física com a tese "Isótopos Radioativos". Outro destaque
de sua produção é o artigo "O Emprego dos Raios X no Estudo dos
Expectorantes".
Filatelista e numismata, o prof. Orsini também fundou a Associação de
Amadores de Astronomia de São Paulo (AAA) e foi diretor da Escola
Municipal de Astrofísica (EMA), anexa ao planetário do Ibirapuera, que
hoje leva seu nome.
O patrono da astronomia amadora ilustra bem o perfil de quem estuda
informalmente os astros no Brasil. São cerca de 4.000 entusiastas, de
geólogos a pedagogos, além de engenheiros, arquitetos, matemáticos,
médicos e curiosos que se reúnem para desvendar o céu, voltando às
carteiras escolares em anacrônicas discussões sobre nebulosas,
supernovas e cometas, essas "estranhas estrelas de cabelos longos".
FUNDAMENTOS
No auditório da EMA, 18 alunos tiveram um semestre de aulas sobre os
fundamentos da ciência --o curso 250, Astronomia Geral. O professor,
Paulo Gomes Varella, é um efusivo senhor de bigodes que lembra um
docente dos tempos de ginásio, daqueles que tentam transmitir aos alunos
seu vasto amor pelas equações de segundo grau.
As aulas, nas tardes de quinta, tiveram início em março de 2011, num
prédio vizinho ao planetário do parque do Ibirapuera. A despeito das
expectativas depositadas no moderno sistema de fibra óptica do novo
projetor alemão StarMaster ZMP, só a última aula foi realizada no
planetário --as demais se deram em diminutas salas com lousas brancas e
projetores de PowerPoint. Os cursos têm uma taxa única que varia de R$
18 a R$ 36.
Varella, 55, tem sotaque paulistano carregado e é um trocadilhista
incansável. Tem formação em geologia e meteorologia (USP) e pós em
ensino de astronomia (Unicsul). Dá aulas na EMA desde 1976, foi chefe do
Observatório Astronômico da instituição e publicou "Reconhecimento do
Céu" (Editora UnB, 1991, esgotado), além de cartas celestes e guias
práticos para observação de estrelas, constelações e chuvas de meteoros.
É o expositor mais ativo da história do planetário, com 1.750
apresentações ao vivo das sessões de cúpula.
Fundada em 1961, a EMA oferece cursos introdutórios (Reconhecimento do
Céu e Astronomia do Sistema Solar) e avançados, como Cosmologia,
Mecânica Celeste, Evolução Estelar e Astronomia Esférica.
Nas aulas básicas, o professor discorre sobre os sistemas solares,
conjunto de astros cuja principal interação é gravitacional, e sobre os
planetas, "corpos errantes que caminham entre as estrelas". Dá uma
informação básica que quase ninguém sabia: a principal diferença
observacional entre estrelas e planetas é que eles não "piscam" --são
pontos de luz fixa, sem a cintilação característica das estrelas.
Ao contrário dos asteroides, que vivem envoltos em poeira e são astros
batatiformes (de massa pequena e alongada), planetas têm massa
suficiente para assumir forma esférica e limpar a vizinhança, isto é,
sua órbita. Asteroides também não têm atmosfera e, por isso, são
cravejados de crateras provocadas pelo impacto com outros corpos
celestes (o que o professor chama de celulite astrofísica). Em relação
aos planetas, asteroides têm dimensões muito pequenas.
A turma anotou com fúria discreta informações sobre a observação de
Saturno, que no ano passado atingiu um brilho considerável, e
surpreendeu-se com a notícia de que em São Paulo é possível ver cinco
planetas a olho nu: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno.
(Intrépida, a repórter conseguiu identificá-los ao longo do ano, com
destaque para a notável inclinação de Saturno e as quatro luas de
Júpiter. A título de gabolice, dizem que Copérnico, em seu leito de
morte, confessou jamais ter visto Mercúrio.)
Aos que não possuem familiaridade com as constelações e não se sentem à
vontade com planisférios de papel, Varella indica um software de
astronomia para iPhone: o Stellarium, que é grátis e reconhece os astros
por GPS, basta apontar o aparelho para o céu.
O professor falou da inclinação das órbitas dos planetas com relação à
eclíptica (órbita da Terra) e da razão pela qual estamos todos
amarfanhados em torno do Sol (atração gravitacional entre massas).
Explicou por que em 1986 não vimos o cometa Halley com o mesmo esplendor
de 1910 --é que, no início do século, o ângulo de visão foi de 90
graus, sendo possível observar todo o seu comprimento.
Segundo relatos da época, e conforme registrado em "A Comet Called
Halley", de Ian Ridpath (Cambridge University Press, 1985), em 1910 a
cauda do cometa chegou a varrer a Terra, gerando boatos apocalípticos de
toda sorte. Varella alerta que não é possível prever o ângulo da
próxima passagem, em 2061, já que o astro percorre um longo caminho e
sua órbita é alterada por gigantes como Saturno e Júpiter.
As variáveis são múltiplas e complexas, ou seja, astronômicas. "Você
acha isso complicado?", repetia o professor, a respeito de qualquer
coisa. "Complicados são os cálculos das órbitas dos astros."
Também complicados são os movimentos da Terra, que não se limitam à
rotação e translação; incluem precessão dos equinócios, nutação,
variação da excentricidade da órbita, variação de latitudes da
obliquidade da eclíptica, deslocamento da linha dos apsides, rotação da
Via Láctea e, ufa, movimento de expansão do Universo.
Na astronomia, afirma Varella, "abandonam-se as unidades convencionais
de medida, do contrário os números ficariam desconfortáveis". É por isso
que, em vez de quinquilhões de quilômetros, usam-se parsecs e anos-luz
--que, a propósito, são unidades de comprimento, não de tempo. "Não faz
sentido dizer: 'Faz uns dez anos-luz que não te vejo.'" Apesar de tudo, é
difícil conceber essas distâncias de fato.
Um amargurado Varella não resistiu à piada e disse que Halley passa uma
vez a cada 76 anos e pode ser visto durante só quatro meses: "É como a
vida do ser humano, uns quatro meses de felicidade e o resto de
martírio. Quando muito".
AMADORES
A astronomia é uma das poucas áreas em que os amadores são maioria e
contribuem com a comunidade científica profissional, dada a
investigações mais segmentadas, sem tantas observações diretas por
telescópios. Suas pesquisas envolvem registros eletrônicos, análises de
dados em laboratório, exercícios de matemática bruta e desenvolvimento
de teorias.
Os amadores, por sua vez, perscrutam o céu à moda antiga --com
telescópios e binóculos de menor porte--, sem depender de orçamentos
apertados e da onerosa locação de aparelhos em observatórios
internacionais. Seus diminutos instrumentos favorecem explorações que
volta e meia complementam a dos profissionais: acompanhamento intensivo
de asteroides, galáxias, manchas solares, exoplanetas, cometas e a Lua.
Alguns são excelentes construtores de telescópios. Uma área que está
praticamente nas mãos deles é a de estrelas variáveis (sistemas
binários), para a qual, segundo Varella, "ninguém tem saco".
Trata-se de observar estrelas que, com o tempo, variam de brilho. Isso
pode ser causado por mudanças internas da estrela ou por influência
externa, como um eclipse entre estrelas de um sistema binário. Trabalho
de paciência e observação bruta, uma braçal coleta de dados relegada aos
amadores.
Uma sistematização nacional dos trabalhos desses diletantes de países
latinos aconteceu em 1988, com a fundação da Rede de Astronomia
Observacional (REA), que zela pelo rigor no método e na coleta dos
dados, para que se prestem a trabalhos científicos.
O forte da REA é a descoberta de supernovas, estrelas maciças que, num
estágio avançado de evolução, explodem, emitindo um brilho intenso, para
depois ir perdendo o fulgor. Nos últimos sete anos, 15 delas foram
reveladas pelo programa de busca Brazilian Supernovae Search, desde
2001, em parceria com o Centro de Estudos Astronômicos de Minas Gerais.
Outro exemplo digno de nota é a descoberta de um cometa na noite de 28
de dezembro de 2002 por um brasileiro da REA, o gaúcho Paulo Holvorcem,
em conjunto com um norte-americano. O cometa foi batizado de
Juels-Holvorcem.
Assim, embora a denominação "astrônomo amador" remeta ao diletantismo,
muitos desenvolvem estudos científicos, coordenam trabalhos e publicam
resultados em revistas especializadas --a diferença é que não possuem
formação acadêmica específica. O exemplo mais lendário é o de Clyde
Tombaugh, agricultor norte-americano que construiu um telescópio usando
partes de um Buick 1910 e peças de uma batedeira de leite de sua
fazenda.
Tombaugh observava e desenhava tudo o que lhe parecia interessante no
céu. Um dia, encaminhou suas anotações ao Observatório Lowell, no
Arizona, em busca de conselhos. Para seu espanto, ofereceram-lhe um
emprego como astrônomo assistente.
Em 1929, foi contratado para levar a cabo uma pesquisa iniciada em 1905
por Percival Lowell. O alvo era um "planeta X", localizado para lá de
Netuno. Dez meses mais tarde, em 13 de março de 1930, após passar noites
em claro na cúpula gélida do observatório, Tombaugh, 24, passaria à
história como o descobridor de Plutão.
SURPRESA
Um tanto afastados das grandes descobertas, vários alunos da EMA foram
pegos de surpresa pela notícia de que as estrelas estão (muito) mais
distantes de nós do que os planetas. Se a Terra estivesse localizada na
Escola de Astrofísica e Netuno no lago do Ibirapuera, Alpha Centauri
estaria em Queluz (a 220 km de São Paulo), viagem que levaria 104 mil
anos só de ida. (Também chamada de Toliman, ela é a estrela mais próxima
da Terra além do Sol.)
A classe era formada por alunos de diferentes idades e profissões. O
mais novo era John Riedel, 13, estudante do oitavo ano do ensino
fundamental e apaixonado por astronomia via Discovery Channel. Havia um
senhor peruano chamado Iván Palacios, que sempre chegava cedo, um casal
de aposentados aficionado por softwares de astronomia, o jornalista
Jorge Luiz de Souza e uma ex-bailarina e personal trainer, Ana Maria
Pereira, 52, que ficou impressionada com a didática do professor.
"Como ele de fato gosta de astronomia, conduz o curso com tanto carinho
que não há como não aprender e se encantar com o universo", declarou.
"Acho que, pela minha profissão, movimento é algo que me encanta e nada
melhor que estudar o universo para entendê-lo melhor."
A estudante de administração Janisse Paiva de Oliveira, 26, participa de
quase todas as atividades da EMA. Cursou Reconhecimento do Céu I
simultaneamente a Física Estelar (Introdução à Astrofísica), com Irineu
Gomes Varella, e achou esta última bem complexa. "Aprendemos sobre a
temperatura dos corpos celestes, as distâncias, a paralaxe, o teorema de
Pitágoras e espectroscopia", explicou. "Tinha muita gente fazendo
contas."
Num folder da escola, o artista Guto Lacaz confessou matricular-se em um
ou dois cursos por semestre: "Comecei com Astronomia Geral, com a
professora Regina Atulim. Cometas, Astronomia Esférica, Sistema Solar,
Eclipses, Efemérides, Tempo e Calendários... Reconhecimento do Céu,
Evolução Estelar... já fiz alguns três vezes!", exclamou, elogiando os
professores Paulo e Irineu Varella. "Conhecimento, bom humor e giz!"
A escola também oferece palestras esporádicas sobre outros temas, como
"Astronomia com o Planeta Mercúrio", ocorrida num sábado à tarde, e uma
série em homenagem à Semana de Radioastronomia, em outubro de 2011. Numa
aula, ministrada por um jovem professor da UFRJ, falou-se das
descobertas cosmológicas obtidas pela sonda WMAP (Wilkinson Microwave
Anisotropy Probe) com a radiação de fundo da nossa galáxia. É uma das
mais fortes evidências observacionais do modelo do Big Bang de criação
do universo.
Comentou-se o formato peculiar das imagens, muito parecido com o emblema
do Batman. Fora isso, o resto da exposição foi praticamente
incompreensível. "Mede-se o espectro de potência em função do ângulo e
momento do multipolo", explicou o rapaz, com a ajuda de gráficos
inexpugnáveis e equações igualmente escandalosas. Alguém fez uma
pergunta cuja resposta era "18 avos de segundo". Diante do silêncio, ele
passou para sua especialidade: nuvens moleculares e astroquímica.
Quando desandou a falar de um tal espectro "maser", suspeitou-se que
estivesse inventando e alguns desistiram de tentar entender. A
introdução à astronomia geral parecia mais ao alcance dos comuns
mortais. Uma revelação banal que causou espécie na turma foi a de que os
meteoroides, ou cometas, têm o tamanho de uma ervilha. "Ervilha,
feijão, grão-de-bico. Os maiores são do tamanho de laranjas", explicou
Varella, creditando o alto brilho dos cometas a um fenômeno de ionização
decorrente de sua altíssima velocidade ao entrar na atmosfera
terrestre.
FURAQUINHOS
Em 20 horas-aula, até o fim do semestre, falou-se da diferença entre
planetas telúricos e jovianos --os primeiros têm composição química e
densidade próximas às da Terra; os últimos, gasosos, são parecidos com
Júpiter.
Este, aliás, gira tão velozmente que tem faixas gasosas alinhadas no
sentido de sua rotação --vista a olho nu, a famosa estrutura em forma de
olho tem 3,5 vezes o tamanho da Terra, e é provavelmente uma tempestade
colossal que vem ocorrendo há três séculos. "Uma espécie de furacão,
sendo que, perto dele, os nossos são 'furaquinhos'", comparou Varella.
O professor também informou que "se jogássemos os planetas na água",
todos afundariam, menos Saturno, que tem a densidade menor do que uma
rolha e, portanto, boiaria". Outra informação importante: Galileu
Galilei não identificou os "anexos" laterais do planeta como anéis:
pensou que se tratasse de um astro triplo. Na mesma época, outros foram
mais criativos: concluíram que Saturno era dotado de orelhas.
Palmeirense roxo e fã da série "Arquivo X", Varella é uma unanimidade.
Sempre de bom humor, compartilha o vício pela astronomia com o irmão
Irineu, 59, e com a mulher, Regina Atulim, 48, ambos professores da EMA.
"É uma família de loucos. Imagina como são as nossas conversas em
casa."
Varella é diretor do Observatório Céu Austral, entidade fundada em 1987
para difundir a astronomia e as ciências da Terra. Ele costuma dizer que
fez tudo errado: se tivesse escolhido a astrologia e batizado o grupo
de "Seu Astral", em vez de "Céu Austral", certamente ganharia mais
dinheiro.
Interessou-se pela ciência aos 14, trabalhando como guia do relógio de
sol e sonoplasta do planetário. Tem um vozeirão de dublador. Sabe contar
histórias e prender a audiência; seu relato sobre a sequência de
Titius-Bode --controversa equação criada para calcular distâncias
planetárias-- deixou todos grudados na cadeira. Guarda na memória uma
infinidade de distâncias interestelares, dimensões, volumes, composições
químicas e temperaturas.
Ele ensina como coletar meteoritos em casa, descreve os siderólitos como
se fossem pés-de-moleque (sendo os amendoins as partes rochosas) e
confessa, emocionado, que gostaria de ter conhecido Hiparco (morto c.
127 a.C.) pessoalmente. Varella crê na possibilidade de vida fora da
Terra, mas "daí a dar um passo além e acreditar em OVNIs, é outra
história".
Fala com entusiasmo da Cratera de Colônia, que ninguém na classe
conhecia e que é praticamente ignorada no meio acadêmico. Localizada na
Zona Sul de São Paulo, em Parelheiros, tem 3,6 km de diâmetro e foi
possivelmente provocada pelo impacto de um meteoro de cerca de 200
metros, há uns 5 milhões de anos. Sua profundidade máxima é de 400
metros.
Desde 1989, a área foi ocupada por loteamentos irregulares que surgiram
com a instalação do Presídio de Parelheiros no interior da formação
geológica. Segundo a prefeitura, hoje há 30 mil pessoas morando em
Vargem Grande, em porções internas e externas da cratera. A ocupação
desconfigurou parte da borda, mas, vindo pela estrada de Colônia, lá de
cima dá para ver o contorno da estrutura. "Provavelmente o meteorito
ainda está encravado lá dentro", diz Varella, lamentando a escassez de
escavações científicas na área.
Na última aula do semestre, ele obteve autorização para abrir uma
vitrine onde estão expostos os meteoritos. Com as duas mãos, tomou um
fragmento do segundo maior meteorito do Brasil, o Santa Luzia, caído em
Goiás, em 1919. Do tamanho de uma bola de boliche, ele foi passando de
mão em mão. O Santa Luzia é feito de uma liga metálica inexistente na
Terra, composta quase que exclusivamente de ferro e níquel de altíssima
densidade. A idade estimada é de 4 bilhões de anos. "Quero que vocês
tenham a sensação de tocar em um corpo celeste que não a Terra",
explicou.
Um aluno conta que foi um desses momentos em que entendemos uma coisa
não só com a mente, mas com o corpo, com a pele. "Lembro quando li pela
primeira vez que estamos em cima de uma pedrinha que flutua no espaço",
comentou. "O frio, o arrepio que tive ao pensar nisso me deixou quase
paralisado. Deu até vertigem."
O objeto pesa 22 kg --bolas de boliche têm até 7,25 kg--, ou seja, só
pode ser feito de um material muito condensado e singular. Uma rocha
densa, gelada e metálica que veio do espaço. "Vou falar de novo: VEIO DO
ESPAÇO!", ressaltou uma aluna, ainda incrédula.
OBSERVATÓRIO
Olhando de longe, mais precisamente de um telescópio dobsoniano, até
parece que a Escola Municipal de Astrofísica é um centro de excelência
internacional com verba milionária, equipamentos modernos e total
subsídio do governo. Se a estrutura funciona, é por pura tenacidade dos
envolvidos, sobretudo os professores.
No último sábado de cada mês, o planetário organiza uma sessão noturna
de observação com telescópios na laje da escola. "A gente tenta, na
medida do possível, promover essa atividade", comentou o diretor dos
planetários da cidade, João Paulo Delicato, um rapaz de voz calma que é
também coordenador da Sociedade Brasileira para o Ensino da Astronomia.
Ele está no comando dos planetários desde janeiro de 2011.
Como todo bom astrônomo amador, Delicato começou com uma licenciatura em
ciências exatas, passou a pesquisador do departamento de Física da
Universidade Federal de São Carlos e criou o Laboratório de
Magnetohidrodinâmica da USP. Trabalhou nos planetários de Brotas e de
Campinas e acabou presidente da Associação Nacional de Foguetes
Amadores, a ANFA.
Ele se considera na obrigação de promover esses eventos ao público
apesar da precariedade das instalações do terraço, que possui fios de
radiotelescópio espalhados pelo caminho e inexplicáveis reentrâncias
arquitetônicas que tapam partes do céu e deixam as laterais da laje
completamente vazadas. "Pra vocês terem uma ideia, o arquiteto que fez o
planejamento do prédio da EMA tinha decidido que o espaço de observação
com cúpula ficaria só de enfeite para a população passar e olhar",
explicou.
Daí a necessidade de orientar bem o grupo antes das observações. "A laje
é aberta e vazada, então, quem está com criança pequena, por favor
fique de olho, segurando a mão. Nada de correr. Até porque a gente não
pode deixar a luz acesa com muita intensidade, senão ofusca a
observação", explanou Delicato a uma plateia de aproximadamente
cinquenta pessoas. A maioria nunca tinha usado um telescópio.
Ele prosseguiu: "Lá em cima está muito escuro, tenham cuidado ao subir
as escadas. É para andar com calma, olhando bem para não tropeçar em
nenhum fio e nem nos aparelhos".
Segundo Paulo Varella, o prédio da EMA foi construído na década de 60
pela Comissão de Construções Escolares do Município, que não levou em
conta a funcionalidade do observatório. A preocupação foi mais estética,
com o projeto arquitetônico, e é por isso que até hoje a cúpula
prateada do terraço continua sem uso.
"Após a construção, chegou-se a abrigar um telescópio construído aqui
mesmo no planetário, com 30 cm de abertura, mas isso só durou uns meses.
O problema era que, quando passava um ônibus na avenida República do
Líbano ou na Pedro Álvares Cabral, a cúpula tremia." O projeto original
não previa a instalação de uma coluna de concreto junto ao solo,
independente da estrutura do edifício, para isolar o telescópio de
vibrações.
Hoje, a administração da escola tenta pelo menos reativar a cúpula para
as atividades com o público. "Seria interessante se, no futuro, a gente
pudesse ter essa coluna. Isso é um trabalho de engenharia, porque vai
ter que furar esses dois pisos pra colocá-la - isso se houver realmente a
intenção de transformá-la numa cúpula observacional. Porque, se for só
para uso didático, acho que podemos improvisar alguma coisa", garante
Varella, que pensa em instalar calços de borracha nos pés do telescópio
para amortecer vibrações externas, à maneira do que é feito nas Star
Parties americanas, famosos encontros de astrônomos amadores.
"Seria uma tentativa. Se não der certo, podemos tentar outra coisa:
montar a base de concreto do telescópio em cima de um colchão de areia. A
areia é um material não consolidado e entremeado de ar, que não
transmite vibrações e até ajuda a absorvê-las." Numa demonstração de
otimismo, o grupo já faz reparos na abertura da cúpula.
Por enquanto, porém, as opções são mambembes. Orientados pelos monitores
do planetário, os visitantes sobem à laje e fazem fila atrás de três
telescópios ETX-125 EC, da marca Meade, cada um com 5 polegadas de
diâmetro e controle eletrônico, no valor de 1,5 mil dólares. Há também
um LX 200 da Meade, de 12 polegadas com GPS, que custa 7 mil dólares.
Delicato especifica quais astros estarão visíveis em cada um deles. Em
2011, devido ao mau tempo, só houve três observações abertas ao público:
em maio, agosto e dezembro.
No evento de agosto, com o céu de inverno a pleno vapor, os corpos
observados foram a nebulosa planetária NGC 6302, também chamada de
Nebulosa da Borboleta; a constelação de Scorpius (Escorpião), por onde
passa o centro da nossa galáxia; e a estrela Antares, uma supergigante
vermelha 700 vezes maior que o Sol. Pelo telescópio, dá pra ver que
Antares é um sistema binário, ou seja, na verdade são duas estrelas.
Na observação de dezembro, às vésperas do Natal, os três telescópios
foram apontados para o planeta Júpiter, com diferentes tipos de aumento.
Foi possível distinguir as manchas do planeta, sua coloração
alaranjada, algumas estruturas e suas quatro luas. Também houve uma
breve observação de Achernar, estrela achatada e azulada que é a mais
brilhante da constelação Eridanus.
Deparando-se com certa ansiedade e muxoxos esparsos, João Paulo Delicato
insistiu que é preciso ter calma e concentração. "Não é como as imagens
do Hubble que estamos acostumados a ver. Não é só encostar a cara no
telescópio que as coisas saltam aos olhos e você vê Marte e os marcianos
acenando. Depende de paciência e de uma certa delicadeza", observou.
"Se for um planeta, você vai enxergar primeiro uma bolinha, depois um
contorno e um detalhe ou outro. No fim das contas, essa manchinha que
você viu tem milhões de quilômetros de diâmetro, está a centenas de
anos-luz de distância e é na verdade uma coisa muito interessante cuja
imagem levou um tempo enorme para chegar até nós. É importante ter isso
em mente."
No fim da fila, um grupo de rapazes vestidos para a balada parecia
alvoroçado com a experiência, ocupando-se em defender a existência de
extraterrestres para o resto da fila. Um deles achava um erro terem
enviado ao espaço uma sonda com informações sobre a Terra. "Os ETs vão
pegar todos aqueles dados e invadir o planeta", afirmou, exaltado, na
certeza de estar impressionando as meninas.
ASSOMBRO
Caminhando pelo parque, Paulo Varella consegue reconhecer de longe quem
são os loucos que estudam na Escola de Astrofísica: aqueles que olham
mais pra cima do que pra baixo. E tropeçam. Certa noite, ele mesmo
carregava uma caixa de equipamentos e quase foi ao chão, preocupado em
sondar o céu à procura de Vênus.
Ministrado no planetário com o auxílio do projetor, o curso de número
637 - Reconhecimento do Céu 1 - é o mais procurado da instituição.
Muitas vezes, as 120 vagas se esgotam. No segundo semestre do ano
passado, 76 pessoas se inscreveram.
As aulas aconteceram às terças-feiras, das 19h30 às 21 horas, com uma
turma vespertina às quintas-feiras formada pelos ex-alunos de Astronomia
Geral. Aula a aula, todos procuravam se sentar nos mesmos lugares para
facilitar a memorização - menos uma vez, em outubro, quando o projetor
"deu chilique" e não estava funcionando devidamente, projetando o norte
no sul e gerando outras imprecisões espaciais. A questão foi resolvida
com a expertise de Varella na arte do improviso: ele desligou as letras
verdes dos pontos cardeais e pediu que os alunos trocassem de lugar.
"Finjam que o leste é pra cá", orientou, pedindo perdão pelo despautério
da proposta.
Vez ou outra, o aparelho sofria panes menores ou saía de esquadro, e aí
valia o conhecimento bruto do professor, que corrigia manualmente os
problemas e botava a turma (e o aparelho) de volta no eixo. Em várias
ocasiões, ele foi capaz de continuar a aula normalmente, falando sobre
coisas complicadíssimas "enquanto, com um martelo e uma talhadeira, vou
tentando consertar o projetor". Para os íntimos, o StarMaster é também
chamado de "A Bolinha".
Reparos também são necessários no caso da esfera armilar instalada
diante do planetário, uma estrutura giratória de ferro que permite a
visualização espacial do movimento celeste, tendo como referência a
cidade de São Paulo. Executada por um artista plástico, ela apresenta
imprecisões de nomenclatura que precisam ser corrigidas verbalmente pelo
professor. Além disso, só pode ser destrancada com antecedência - por
segurança, a esfera é presa por um cadeado e correntes, já que uma
criança "quase perdeu o braço girando ali dentro".
Também têm problemas os planisférios impressos pela Prefeitura em 2005
para a inauguração do planetário do Carmo, distribuídos gratuitamente
aos alunos no final do semestre. Por algum motivo, o leste e o oeste
foram assinalados no lugar errado, a muitos graus de distância de sua
localização efetiva, como se os diagramadores houvessem tentado
"centralizar" as legendas.
No interior da cúpula, a dinâmica das aulas era sempre a mesma: uma
explanação teórica no início, com as luzes acesas, e depois o fechamento
das portas, o breu e as estrelas surgindo garbosamente no céu. Mesmo na
última aula, quando a turma já deveria estar acostumada, ouviam-se
expressões de assombro seguidas de um silêncio quase religioso,
sobretudo quando as estrelas mais fracas, de quinta ou sexta grandeza,
terminavam de preencher a abóbada.
Paulo Varella falou orgulhoso do alemão Johannes Bayer, advogado de
formação e astrônomo amador que inventou a atual nomenclatura estelar.
Seguindo a ordem decrescente de brilho, pega-se uma letra do alfabeto
grego e junta-se à forma genitiva da constelação em latim, o que resulta
em nomes como Alpha Centauri (a estrela mais brilhante da constelação
de Centaurus) e Eta Carinae (a quinta estrela mais brilhante de Carina),
que está prestes a explodir e virar supernova. "Se a Terra estiver no
caminho, estamos perdidos", comenta um dos professores da Semana de
Radioastronomia.
Já as cores das estrelas estão diretamente relacionadas às suas
temperaturas superficiais. As mais quentes são azuis (Rigel, Achernar),
e, em ordem decrescente de calor: brancas (Vega, Sirius), amarelas
(nosso Sol, Capella), alaranjadas (Arcturus, Aldebaran) e vermelhas
(Antares, Betelgeuse).
A cada aula correspondeu um modelo de céu e sua respectiva
constelação-símbolo: em pleno inverno, começamos pelo céu de verão, o
mais simples, que entrou em campo com Orion, as Três Marias e Sirius, a
estrela mais brilhante do céu noturno. Depois passamos para o céu de
outono (constelações Leo e Crux), inverno (Scorpius) e primavera
(Pegasus). Varella iniciava a projeção recapitulando as aulas anteriores
e agregando uma ou outra novidade, de modo que, lá pelas tantas, a
crença geral era de sairíamos confusos o bastante para estranhar a
própria Lua.
Porém, aos poucos, as coisas foram se encaixando. Incentivado por um
chilique permanente do projetor, Varella não ativava os desenhos
artísticos das constelações (linhas imaginárias que ligam as estrelas),
limitando-se a apontar suas respectivas formas com a caneta laser para
que os alunos as visualizassem mentalmente.
A todo instante, lembrava que os desenhos saíram da imaginação dos
antigos e que não faziam necessariamente sentido. "Alguém aí está
conseguindo ver um homem vertendo água de uma ânfora? Parabéns, porque
eu não vejo nada", comentou sobre a constelação de Aquarius. Ou: "Não dá
pra saber se isso é cavalo, peixe, borboleta ou princesa."
Foi assim que, para muitos, a constelação Piscis Austrinus passou a ser
imediatamente reconhecida sob a alcunha de Pimentão Celestial, e
Sagitarius virou Bule de Chá, para fins didáticos. Em Eridanus há uma
curva de estrelas com um perturbador formato de panetone, aclamada pela
turma como O Bolsão do Panetone (a maioria dos alunos não havia
jantado). Já Canis Major parecia um cão bassê com as patas dianteiras
num galope celestial. Muito repetido foi o trocadilho "no meu tempo,
havia láctea", um sucesso até entre os alunos repetentes.
"No final da aula, lá pelas nove, nos reuníamos na rosa-dos-ventos, ao
ar livre, para tentar caçar as poucas estrelas que apareciam no céu",
conta Nicol Alexander Alfaro, jovem chileno radicado no Brasil que se
formou em engenharia elétrica, mas largou tudo para estudar produção
audiovisual. "A maioria das vezes estava nublado, uma vez ou outra o céu
um pouco mais aberto, mas só conseguíamos ver umas poucas estrelas. O
Paulo, com aquela precisão e sotaque característicos, apontava seu raio
laser para uma estrela solitária e sentenciava: 'Aquela é RRRRigel'". E
era mesmo.
BLECAUTE
Ao ar livre, os caçadores de estrelas do curso quase nunca tinham sorte.
Ainda mais no último ano, depois que o Parque do Ibirapuera ganhou um
sistema de iluminação 350% mais potente do que o anterior.
Sem consultar a Escola de Astrofísica, a administração trocou as
lâmpadas tradicionais de vapor de sódio ou mercúrio por lâmpadas LED de
113 watts, que emitem luz branca. As bases de 13 metros também foram
reduzidas para 5 metros de altura, para que as copas das árvores não
interferissem na projeção de luz. A troca do sistema custou 11 milhões
de reais, compartilhados entre Eletropaulo e o Departamento de
Iluminação Pública de São Paulo, o Ilume.
A medida visava melhorar a segurança do parque, mas, para os astrônomos
da EMA, foi como um assalto à mão armada. "A poluição luminosa é a maior
inimiga da observação", sentenciou o diretor do planetário, enquanto
regulava um telescópio.
Mesmo com um céu sem nuvens e os aparelhos de alta precisão espalhados
sobre a laje, era difícil obter um bom horizonte de observação. A
iluminação ultra potente deixava o céu esbranquiçado, opaco, sem
contraste. Inadequada, desperdiçava boa parte da energia para cima,
ofuscando o céu e a terra. "Inclusive já é possível fazer cirurgias lá
na calçada", informou Paulo Varella.
Na rosa-dos-ventos, após as aulas, ele instruía os alunos a taparem com
as mãos as lâmpadas mais próximas. A cena era surreal: uma dezena de
pessoas agrupadas no meio do nada, com as mãos estendidas em posições
aleatórias, olhando para cima. "Haja estilingue", brincou o professor,
que desde então procurou convencer a administração do parque a instalar
um interruptor para apagar as lâmpadas em torno do planetário, nem que
fosse só no horário das aulas.
Há alguns meses, o problema foi resolvido. Agora é possível apagar as
luzes no entorno do edifício da EMA, o que melhora muito as observações
na laje. Além disso, foi instalada uma iluminação mais direcional nos
postes. Foi um avanço, mas ainda há muito a fazer. "É por isso que a
gente ama blecaute", o professor resumiu.
Para além dos esforços em adequar a iluminação, Varella afirma que
tentou instalar um posto de observação no jardim da escola, às margens
do lago, próximo ao chamado Patódromo - praça circular que à tarde é
invadida por patos e à noite cai numa relativa escuridão. A ideia era
distribuir pelo espaço três pequenas cúpulas fixas para os telescópios
ETX, recém-doados pela Fundação Vitae. "Cada cúpula teria no máximo uns 2
metros de altura e 1,80 metro de diâmetro, só pra abrigar o instrumento
e evitar que, a cada observação, tivéssemos que transportá-lo e
montá-lo. Sobretudo porque são aparelhos delicados e pesados, de uns 55
kg cada, que podem ser descolimados com facilidade."
Ele encaminhou o projeto ao Condephaat, o Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, que negou o
pedido. A justificativa? "Quebraria a ambiência do parque." Além disso,
Varella descobriu que o parque inteiro fora tombado, não só os edifícios
como o projeto paisagístico, e por isso não se permitem novas
construções.
Em matéria estelar, a sonolência generalizada do poder público não é
novidade. Em 1952, o prof. Aristóteles Orsini encomendou um projetor de
última geração da Alemanha (o Zeiss 3) e deu início aos trabalhos para a
construção do primeiro planetário paulista, no Ibirapuera, a ser
inaugurado no quarto centenário da cidade. Após passar um tempo retido
na alfândega, o aparelho ficou encaixotado no Viveiro Manequinho Lopes à
espera do término da construção do edifício. A inauguração se deu em
1957, três anos depois do previsto.
O mesmo ocorre ainda hoje com o planetário do parque do Carmo, em
Itaquera, fechado há cinco anos. O milionário projetor Universarium 8,
da Zeiss, foi adquirido em 1996 e ficou encostado num depósito por quase
uma década. Bancado pela Telefônica, o edifício em si começou a ser
construído em 2002, com uma cúpula de 20 metros de altura - maior que a
do Ibirapuera. Já nessa época, devido à prolongada inatividade, o
projetor precisou de reparos e foi enviado de volta a Alemanha.
A inauguração ocorreu em novembro de 2005, três anos e 11 milhões de
reais depois. Contudo, em fevereiro de 2007, o edifício começou a
apresentar goteiras e rachaduras e foi fechado para reformas. Por conta
da umidade, os equipamentos voltaram a apresentar problemas.
Em junho do ano passado, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente
manifestou-se sobre o assunto para um jornal da Zona Leste. Declarou que
a Prefeitura estaria "viabilizando trâmites para a compra das peças
avariadas do projetor" e que "todas as medidas formais estão sendo
tomadas para que o planetário volte a funcionar o mais rapidamente
possível".
Nas últimas semanas, o projetor voltou a funcionar e houve algumas
sessões experimentais para escolas. A reabertura oficial do Planetário
do Carmo não deve demorar.
FREITAS
Quando o assunto é telescópio ou binóculo quebrados, a senha é "Passa no
Freitas", acompanhada de um misterioso número de telefone. De cabelos
grisalhos, olhos castanhos e voz grave, Roberto Freitas conserta e monta
aparelhos ópticos em sua garagem, numa bucólica casa de vila no
Cambuci.
É formado em administração de empresas com pós-graduação em marketing.
Trabalhou na Victorinox, fábrica suíça de materiais de cutelaria, até
que, há dez anos, decidiu pedir um afastamento para dedicar-se
integralmente à construção e manutenção amadora de telescópios. Batizou
seu empreendimento de Razão Focal. "Eu acho que sempre fui um
astrônomo", confessou, enquanto examinava um binóculo SkyMaster da marca
Celestron, de 15x70 milímetros.
O cliente que procura seus serviços ópticos já chega avisado de que deve
reservar uma tarde inteira para a visita, pois Freitas adora conversar.
Ainda que esteja acostumado a colimar (alinhar) um instrumento em
poucos minutos, ele gasta o resto do tempo falando de seu assunto
preferido: astronomia amadora. "Já me chamaram de lunático, de professor
Pardal, dizem que vivo no mundo da Lua", admite.
De saída para assistir a uma palestra sobre espelhos metálicos no 14o
Encontro Nacional de Astronomia, o ENAST, na qual basicamente pretendia
discordar de tudo o que fosse dito, ele convida os visitantes a voltarem
com mais calma em uma noite de céu limpo. "A gente faz um pão de queijo
e brinca com este telescópio", diz, referindo-se a um modelo que ele
mesmo montou a partir de peças avulsas.
Freitas não se considera um comerciante e nem se preocupa com o lucro.
Gosta de despertar o interesse pela ciência e compartilhar
conhecimentos. Sua área de interesse aumenta a cada dia, conforme ele
navega na internet em busca de novidades, participa de fóruns e manipula
uma infinidade de lentes, adaptadores, tubos de foco e tripés,
abarrotados em caixas de papelão nas estantes.
A REVANCHE
"A astronomia é uma experiência de humildade e formação de caráter",
escreveu o cientista Carl Sagan em Pálido Ponto Azul. Embora seja uma
ciência complexa e intimamente ligada à física e à matemática, ela
costuma cativar as pessoas pelo seu aspecto humanista. Numa matéria
sobre o Ano Internacional da Astronomia (2009) para a revista da
Livraria Cultura, o engenheiro químico Tasso Napoleão descreve o
processo: "Primeiro vem o deslumbramento. Depois, aquela sensação de que
não passamos da 'mosquinha no cocô do cavalo do bandido'."
A personal trainer Ana Maria Pereira concorda: "Para mim, as aulas foram
uma terapia. Aprendi a ver como tudo é grandioso e que podemos passar o
resto de nossos dias descobrindo coisas, se quisermos".
Outra coisa que atrai os amantes da astronomia é saber que, em cada
ponto do céu que observamos, há um passado diferente. A luz de Alpha
Centauri, por exemplo, saiu de lá em novembro de 2007. A de Beta
Centauri, em fevereiro de 1522, pouco depois do Descobrimento do Brasil.
Paulo Varella costuma dizer que o telescópio Hubble não é só um
instrumento óptico, mas um verdadeiro observador do passado, pois suas
imagens captam a história longínqua do universo.
"Os números astronômicos são tão gigantescos que olhar para toda a
história da civilização é como lembrar de um pequeno espirro ocorrido
alguns segundos atrás. Essa sensação é ao mesmo tempo aterradora e
libertadora", filosofa um dos alunos, que por humildade não quis se
identificar.
Já para Nicol Alexander, o melhor de tudo foi passar horas mergulhado na
cadeira, olhando para aquela abóbada. "Mais para o final do curso,
estudamos o movimento dos planetas, então o professor acelera o tempo
para que tenhamos uma percepção mais clara do processo. Dá até vertigem
olhar para as estrelas. Vemos um ano passando em segundos, acompanhamos a
dança de Mercúrio, as mudanças da Lua", lembra.
Ele diz que gostaria de fazer os cursos de Reconhecimento do Céu 2, 3 e
4, e "até os confins do Universo conhecido". Sexta-feira passada
encerraram-se as inscrições para o tão sonhado "Reconhecimento do Céu 2 -
A Revanche", que vai acontecer às terças-feiras à noite, de 9 de
outubro a 13 de novembro. Ainda não há previsão para o "Reconhecimento
do Céu 3 - A Fronteira Final".
Acessível a curiosos com todo tipo de formação, a astronomia desdenha da
nossa arrogância e da ilusão de que estamos numa posição privilegiada
do Universo. "Nosso planeta é um grão solitário na vasta escuridão
cósmica", definia Carl Sagan. Diante de grandezas assim inconcebíveis,
nossas preocupações e angústias caem fatalmente no ridículo. Nas
palavras de Sagan: "Não há, talvez, prova maior da tolice das vaidades
humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela enfatiza
nossa responsabilidade de tratar melhor uns aos outros e de preservar e
estimar o único lar que conhecemos."
Não há dor nas costas e desilusão amorosa que resista a uma boa aula no planetário.