Projeto Portal foi uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa durante os anos de 2008 e 2010. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — foi distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Seis números (de papel e tinta, não online). O título de cada revista homenageou uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit.


Idealização: Nelson de Oliveira | Projeto gráfico e diagramação: Teo Adorno
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O escritor Flavio Medeiros disseca Portal 2001



O escritor Flávio Medeiros (Casa dos Vampiros, participação no Steampunk, Vaporpunk, etc) deixou seus comentários na comunidade de Ficção Científica do Orkut, comentários que transcrevo abaixo... acrescentando o diálogo final com o Roberto Causo...

* * *
>Flavio Medeiros:

Dissecando o Portal 2001



Desde já, quero salientar que não me considero um resenhista. Parece-me que essa denominação exige alguns talentos que não creio dominar. Porém, tendo recebido de presente o Portal 2001 (esse é meu primeiro), considero que o mínimo que me cabe fazer é comentar o conteúdo. De um presente o mínimo que se deve fazer é dizer se gostou ou não. No caso de um livro, justificando. No caso específico do Portal, o prefácio me sugere que é isso o que ele espera de mim. Portanto, quero destacar que não estou fazendo nenhuma análise acadêmica. Estou expressando simplesmente meu gosto pessoal, baseado em minha experiência como leitor e escritor de FC.

No geral, contemplando todos os altos e baixos, considero o livro uma das coletâneas de melhor equilíbrio entre os textos dos diversos autores. Há, sim, textos habilmente escritos e outros que revelam imaturidade do escritor. Há textos “limpos” e eloqüentes, outros repletos de recursos heterodoxos, metalinguagem e subversões em vários graus (curiosamente, são muitos em um livro só!), que eu particularmente chamo de “pirotecnia literária”, e que às vezes comprometem a qualidade e a compreensão. Não que isso seja ilícito ou defeito; mas, volto a dizer, o conteúdo deste texto obedece a uma questão de gosto pessoal.

Há textos de FC e outros de não-FC. Ainda que me pareça que a proposta da coletânea é exatamente a FC, isso não está explícito em nenhum lugar, nem no prólogo, poderia argumentar algum “cri-cri” de plantão. Mas considero sugestivo que os textos que considero de não-FC na maioria das vezes tentam se disfarçar de FC. Fico imaginando o propósito disso. Ser aceito na coletânea? Um escritor de outros gêneros tentando ainda timidamente se arriscar na literatura de FC? Bom, de qualquer forma o efeito final é como aquele cara que nunca ouviu falar de Tatooine, e se fantasia de Darth Vader apenas para paquerar as meninas em uma convenção de Star Wars.
Bem, sem mais delongas, vamos a minhas humildes impressões.

BRAULIO TAVARES – Como eu costumo dizer, “o Braulio é o Braulio”. Seus textos, comigo, são sucesso garantido. Neste Portal, onde alguns autores participam com mais de uma obra, o leitor tem a oportunidade rara de comparar o escritor com ele mesmo, identificando cacoetes, tendências e particularidades de estilo. Curiosamente, Braulio participa com três textos curtos que têm, cada um deles, individualidades marcantes.
(1) A República do Recurso Infinito – Uma pérola da burocracia futurista, consagrando a sobriedade do absurdo. Gostei muito do clima meio kafkiano. O melhor dos três.
(2) Universos Tangenciais – Sonho dentro de sonho. O mais despretensioso dos três textos, onde não percebi o som habitual das engrenagens rodando dentro do cérebro do autor.
(3) Aquele de Nós – A volta para o externo, tendência típica da cultura atual, levada ao extremo pelo recurso da projeção no futuro que a FC possibilita, chegando ao cúmulo da institucionalização do coletivo psicológico. Gostei muito.

ARRIBAÇÃO RUBRA [Roberto de Sousa Causo] – Um dos bons textos do livro, de um dos nossos autores de FC mais experientes. Cenário e personagens consistentes. A única crítica negativa que faço, que tem se repetido em minhas leituras dos textos curtos do Causo, é que o conto me parece um pedaço de algo bem maior. É como ser obrigado a sair do cinema na melhor parte de um filme bom. Decidi que amanhã começo a ler o “Selva Brasil”. Preciso escapar dessa imagem claustrofóbica do Causo...rs*

A PAZ FORÇADA [Mayrant Gallo] – Alguns pequenos anacronismos, que não comprometem essa boa FC em tom irônico e alegórico. Achei um bom texto para apresentar, por exemplo, a leitores do mainstream relutantes em relação à nossa subliteratura predileta.

ALÉM DO ESPELHO [Claudio Parreira] – Realismo fantástico ou fantasia realista? Gostei muito desse texto, que faz uma releitura inteligente e bem humorada de alguns antigos mitos. Desceu redondo.

SENTINELA [Delfin] – FC bem construída, que veio crescendo com perfeição... até o final, que eu achei um pouco decepcionante. Merece, entretanto, uma leitura atenta.

MUSTAFÁ ALI KANSO – Este autor, que eu não conhecia, participa com dois textos. Como escritor me deixou uma ótima impressão.
(1) Herdeiro dos Ventos – Excelente, deliciosa fantasia que homenageia (explicitamente) os escritores de FC. Um dos pontos altos do livro.
(2) Uma Carta Para Guinevere – Esse conto é curioso. Começou frio, uma nave tentando vencer as resistências da gravidade e da atmosfera, forçando o jargão, até que rompe as amarras e acelera para as estrelas. Grande Mustafá!

BRONTOPS BARUQ – Outro que não conheço, que participa com dois textos. Este é um autor que abusa um pouco da pirotecnia. Um cozinheiro que você percebe que cozinha bem, mas que abusou um pouco nos temperos.
(1) Planetas Invisíveis: Diana – Achei mais ou menos. Muito florido, mas senti falta de um centro de gravidade consistente para a trama girar ao redor. O plot não me pegou.
(2) Rebobinados – Gostei muito, mas aqueles números espalhados no texto me irritaram profundamente. Atrapalham minha adesão ao texto, que é uma condição básica que o escritor tem que buscar no leitor. Eu gostaria muito de ver esse mesmo texto desenvolvido de maneira mais ortodoxa, sem “firulas”. Pela qualidade, merece.

PROMETEU ACORRENTADO REBOOT [Sid Castro] – Embora um pouco clichê, achei bem escrito e bem bolado. Como ressalva, apenas o que me pareceu uma curiosa fascinação do autor pelo “technobabble”. Mas seus esforços em nome da coerência me pareceram bem recompensados.

NOVO INÍCIO [Marcelo Bighetti] – Pesquisa minuciosa, porém explícita com algum exagero. O excesso de explicações em alguns momentos afasta o leitor da trama. Boa exploração, até onde percebi, de duas grandes e clássicas teorias de conspiração. Só o final achei fraco, talvez porque, a partir de dado momento, as coisas começaram a correr mais atropeladamente. Ficaria melhor, mais equilibrado, acelerando o início e freando no final.

RODRIGO NOVAES – Também participa com dois textos. Não o conhecia, mas realmente não me fisgou. Me pareceu muito mais interessado na forma do que no conteúdo.
(1) Contato Alpha 9 – O problema é o seguinte: não há jeito, conto é uma leitura rápida. Você tem que encontrar uma forma de fisgar o leitor o mais rapidamente possível. Quando, por excesso de pirotecnia, o leitor não se envolveu até o meio da segunda página, começa a perder o interesse; na página seguinte, o texto começa a perder a importância. Daí pra frente é perda de tempo.
(2) Zaratustra – O que é isso, companheiro? Zaratustra pirou, ou foi Rodrigo? Nunca espere que o leitor seja obrigado a destrinchar cada palavra do seu conto como se fosse a Revelação das Revelações. Porque não é.

MARIA HELENA BANDEIRA – Participa com cinco pequenos textos. Há muito tempo eu não lia nada dessa autora veterana. Esses cinco contos foram um colírio. Algumas características em comum podem trair, a meu ver, o estilo da autora: um humor sutil como pano de fundo, que vez ou outra salta na forma de humor negro; personagens em transformação, vivendo situações onde se surpreendem junto com o leitor. FC de excelente safra.
(1) Neve e sanduíches – O oposto daquelas características de textos anteriores que não me agradam. Um texto curto em prosa discreta (a autora permite que o texto apareça mais do que ela própria), que te fisga rapidamente logo no início, e dá o recado com muita competência. Uma aula de texto curto de FC.
(2) A gruta de Vênus – Divertidíssimo e surpreendente. Lembram que falei em humor negro? Então...
(3) Eblon – Uma velha história de relacionamento em uma novíssima roupagem. E é FC.
(4) Mãos de borracha – Conto ágil, leve e divertido. Senti pena do protagonista.
(5) Quem sabe? – Humor negro cyberpunk na veia, yeah!

MARCO ANTÔNIO DE ARAUJO BUENO – Também não conhecia este autor. Bom escritor. Mas mesmo após ler seus três contos do livro, ainda não sei se ele escreve FC.
(1) Sem Nome – Prosa fluente e bem escrita. Gênero? Um conto, digamos, psiquiátrico.
(2) Arquivo Truncado – Sabe a impressão que me ficou? Um ator romântico perdido num cenário de space opera. Sobre o recheio do “quem sou eu”, desfilam vários clichês daquele gênero da FC.
(3) Seguimento dezenove – Gostei desse, e da forma como foi desenvolvido. Mas sorry, também não é FC.

PRIMEIRO DE ABRIL : CORPUS CHRISTI [Luiz Brás] – Aqui temos um melhor equilíbrio entre a pirotecnia e a FC. Com metáforas bem divertidas. Gostei desse conto.

DANIEL FRESNOT – Participa com três textos. Não o conheço, mas ficou-me a impressão de ser um escritor jovem. Escreve bem, mas constrói seus personagens e situações de forma imatura. Os três contos parecem ser protagonizados pelo mesmo personagem (ou pelo próprio autor?), tais são suas modalidades psicológicas e sua forma de expressão.
(1) Exit – Isso É FC, mas não num bom sentido. Como é possível que dois cosmonautas, retratados como estando entre os melhores, podem se expressar, agir e pensar de forma tão estúpida e infantil, a ponto de deixarem essa estupidez fenomenal conduzi-los a uma armadilha fatal?...
(2) A Vida Sexual dos Dinossauros – Esse conto evocou em mim uma sensação de nostalgia. Escrevi um conto assim anos atrás, usando os mesmos dinossauros, a mesma premissa e o mesmo fechamento. Eu estava no fim da adolescência, e era uma redação escolar a que dei o título “Dinossauros”. Como conto despretensioso, é interessante. Mas fazendo engenharia reversa, percebo que esse escritor tem um bom potencial.
(3) Convenção – O mais honesto, mais amadurecido e melhor dos três. Não é FC, mas é sobre FC, e de forma bem apropriada para figurar no livro.

RICARDO DELFIN – Também comparece com três (bons!) contos, mas só o terceiro reconheci como FC.
(1) Destino – Conto divertido e muito bem escrito. Mas troque meia dúzia de palavras e você tem o mesmo conto ambientado no bom e velho oeste americano.
(2) Futuro do Pretérito – A idéia é interessante e a trama se desenvolve de forma competente. Mas não engoli que a maneira como o autor trata a questão do tempo confere credibilidade para afirmar que é FC.
(3) Gazeta Marciana – Ah, este sim! Se observarmos a diferença entre eles, veremos que só o terceiro conto contém elementos profundamente enraizados na trama o suficiente para afirmarmos que aqui temos uma história onde a FC é sine qua non. E de ótima qualidade, por sinal.

AMOR-PERFEITO [Rogers Silva] – Não gostei. A pirotecnia usada aqui tem chance de dar certo, mas você precisaria ser o Saramago. Falar de passagem aqui e ali sobre um suposto apocalipse não transforma o texto em FC. Na segunda página o(a) protagonista se descortinava ante meus olhos como um insuportável chato lamuriento, e eu daria ao conto o nome de “Amor Doentio”.
Mais uma vez agradeço o recebimento do Portal 2001, e parabenizo os organizadores pela qualidade e pelo projeto em si.

>Causo:

Esclarecendo apenas que "Arribação Rubra" é a quinta aventura da heroína Shiroma, em uma série que está sendo desenvolvida dentro do Projeto Portal do Nelson de Oliveira. No "Portal Solaris" apareceu a primeira história, "Rosas Brancas"; na "Portal Neuromancer", a segunda, "Concha do Mar"; a terceira, "O Novo Protótipo", apareceu na "Portal Stalker"; a quarta, "Cheiro de Predador", na "Portal Fundação". A última revista do projeto será a "Portal Farenheit", que também deverá trazer uma aventura de Shiroma. "

>Flavio Medeiros:

Pô, Causo, agora sinto-me prejudicado pegando a novela pelo meio. Vê se compila tudo isso um dia e lança em sequência. Quanto ao "Selva Brasil", já passei da metade, e vai indo muito bem."

>Causo:

"Vê se compila tudo isso um dia e lança em sequência."
Está nos planos... "


(Fonte Imagem > Morbid Anatomy )


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