Projeto Portal foi uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa durante os anos de 2008 e 2010. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — foi distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Seis números (de papel e tinta, não online). O título de cada revista homenageou uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit.
Idealização: Nelson de Oliveira | Projeto gráfico e diagramação: Teo Adorno
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Mandelbrot no vale dos Cavalos Marinhos
Intuições Fractais: Matéria (de João Moreira Salles) sobre Mandelbrot publicada na revista Piauí deste mês. Disponível (por enquanto) AQUI.
Trecho:
"Benoît Mandelbrot morreu no dia 14 de outubro passado.
Fosse ele um homem mais fácil de classificar, a frase seria outra: “O matemático Benoît Mandelbrot morreu no dia 14 de outubro passado.” Mas aí teríamos de combinar com os matemáticos, muitos dos quais achavam que Mandelbrot “podia ser muitas coisas, menos um deles”.
Muitas coisas, de fato, ele foi. O texto que o apresentou como conferencista de um seminário dizia: “Lecionou economia em Harvard, engenharia em Yale, fisiologia na Faculdade Albert Einstein de Medicina...” Aventurou-se na linguística e estudou a oscilação dos preços do trigo. Escreveu sobre a distribuição espacial entre cidades grandes e pequenas. Decifrou o mistério do ruído aparentemente aleatório das ligações telefônicas, provando que eram inevitáveis e, ao contrário do que pensavam os engenheiros, regulares. Identificou padrões entre terremotos e frequências cardíacas. Terminou a vida como catedrático de matemática em Yale, aos 85 anos, sem jamais ter provado um teorema relevante.
(...)
Mandelbrot nasceu em Varsóvia, em 1924. O pai era comerciante de roupas, e a mãe, dentista. Em 1936, a família fugiu para Paris, onde o jovem Benoît conviveu com um tio matemático. Com a aproximação dos nazistas, se mudaram para o interior do país. O dinheiro era pouco. Mandelbrot fazia pequenos serviços – aprendiz de artesão ferramenteiro foi um deles – e, por medo de ser denunciado, frequentou pouco a escola naqueles anos. Terminada a guerra, entrou na Politécnica driblando as falhas de formação com o vigor da intuição geométrica. Dado um problema qualquer, imaginava uma forma correlata e jogava com ela na cabeça. Mexia, esticava, dobrava, até que a solução se apresentasse.
Mandelbrot não seria muita coisa sem as formas. A geometria clássica ensina, desde cedo, a domesticar as coisas que nos cercam. Percebemos a montanha como um cone e a lua como esfera. São formas que abstraem o mundo, que escapam dele em direção ao plano ideal, platônico. Mandelbrot via diferente. Diante de uma rocha, perguntava: Mas e as reentrâncias, as lascas? “As nuvens não são esferas”, observou. O mundo não é puro, macio e liso, mas áspero, irregular e descontínuo. As formas clássicas, mais que pobres, eram impotentes para explicar as impurezas.
Era preciso criar uma geometria que soubesse descrever as nuvens e as folhas da samambaia. Tendo de começar por algum lugar, Mandelbrot olhou para o chão. Mais precisamente, para o limite entre a terra e o mar. Em 1967, publicou um artigo, que se tornaria clássico, cujo título perguntava: “Qual o tamanho da costa da Grã-Bretanha?” Lia-se logo no segundo parágrafo: “Uma costa selvagem é extremamente sinuosa, e, por conseguinte, seu comprimento final se mostrará de tal grandeza, que não haverá inconveniente prático em considerá-la infinita.”
“Ora bolas”, resmungaria um inglês mal-humorado. Caminhar era um passatempo nacional por aquelas bandas, e não poucos nobres e plebeus haviam dado a volta na ilha. Como não eram eternos e concluíram a excursão, a costa britânica podia ser tudo – selvagem, sinuosa, bela –, mas infinita, não, definitivamente não.
Mandelbrot propôs que se imaginasse uma cena: um homem caminha pelo litoral, sempre o mais perto possível do mar, e a cada passo deixa uma pegada. Quando reencontrar o ponto de origem, a linha que une todas as suas pegadas representará o comprimento da costa. Substitua-se agora o homem por um lagarto. Incapaz de, num só passo, cobrir com suas patas a mesma distância de um passo humano, o bicho terá de levar em conta acidentes que o homem ignorou. Reentrâncias não serão saltadas, mas percorridas. A linha descrita pelo lagarto será mais irregular e mais longa do que a do homem. Mais extensa ainda será a linha da formiga, que perceberá um seixo como relevo, como caminho a ser vencido.
A costa da Grã-Bretanha não tem um comprimento intrínseco, disse Mandelbrot. A medida do homem é antropocêntrica, uma entre tantas outras. O comprimento do litoral dependerá do agrimensor, da abertura do compasso – as pernas do homem, do lagarto, da formiga. Será menor a estimativa para o pássaro do que para o cão. Quanto maior o número de obstáculos percebidos, maior a extensão da costa, que, no limite, tenderá ao infinito.
“Qual tamanho tem?” se transformaria, então, em outra pergunta: “Visto de onde?” Visto do espaço, um Fusca é um ponto e tem dimensão zero. Do céu, pode ganhar extensão e ter duas dimensões. Do chão é tridimensional. De mais perto, do ponto de vista da formiga que caminha sobre a superfície lisa do para-lama, perde a terceira dimensão, volta a ser um plano. A escala é determinante.
Mandelbrot observou que formas irregulares – o litoral, por exemplo – tinham uma característica singular: sua complexidade não se alterava com a escala. O homem percebia certos recortes, o réptil percebia outros mais e outros ainda o inseto. Mas não era só isso: independentemente da escala, a forma percebida se mantinha substancialmente a mesma, como se cada segmento repetisse o todo.
Essa característica –- a autossemelhança -– é o centro da geometria criada por Mandelbrot. O mínimo se parece com o imenso. Uma pequena nuvem é semelhante a uma nuvem grande e ambas obedecem a um princípio organizador único."
(Vídeo via Problemas/Teoremas)