Projeto Portal foi uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa durante os anos de 2008 e 2010. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — foi distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Seis números (de papel e tinta, não online). O título de cada revista homenageou uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit.
Idealização: Nelson de Oliveira | Projeto gráfico e diagramação: Teo Adorno
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Tarkovsky (diretor de Stalker) fala sobre Lem (Solaris)
Uma entrevista de 1973. Leia toda a entrevista no site SIBILA.
Zbigniew Podgórzec: Por que, em um filme [Solaris] que poderia ser incluído na categoria de ficção científica, você está mais concentrado no drama de consciência do herói do que na situação dramática na estação espacial?
Andrei Tarkovsky: Quando eu li o romance de Lem [1], o que sobretudo me tocou foram os problemas morais evidentes no relacionamento entre Kelvin e sua consciência, como manifestado na forma de Hari. De fato, se eu compreendi, e admiro profundamente, a segunda metade do romance – a tecnologia, a atmosfera da estação espacial, as perguntas científicas – era inteiramente por causa dessa situação, que me parece ser fundamental na obra. Os problemas internos, escondidos, humanos, morais, fundem-se sempre distantes, mais do que todas as perguntas da tecnologia. E toda a tecnologia do caso, e como é trabalhada, relaciona-se ao fim invariavelmente às questões morais.Estes problemas me interessam mais. Minhas fontes principais são sempre o estado real da alma humana e os conflitos que são expressos em problemas espirituais. Assim, eu dei mais atenção a esse lado das coisas em meu filme, mesmo que inconscientemente. Fazia parte do processo orgânico da seleção. Eu não apaguei o resto, mas tornou-se, de algum modo, mais apagado do que as coisas que me interessaram mais.
ZP: Qual a ideia central de seu filme?
AT: O central são os problemas interiores, que me preocuparam e que preponderaram a produção inteira de uma maneira muito específica. Ou seja, o fato de que, no curso da humanidade, do seu desenvolvimento, esta, por um lado, está lutando constantemente entre a entropia espiritual, moral, e a dissipação de princípios éticos; e, por outro, aspirando um ideal moral. O esforço interno e infinito do homem que quer se ver livre de toda restrição moral, mas procura ao mesmo tempo um significado para seu próprio movimento, na forma de um ideal, que é a dicotomia que produz constantemente o conflito interno intenso na vida do indivíduo e da sociedade. Parece-me que o conflito e a busca fértil e urgente por um ideal espiritual continuarão até que a humanidade se liberte suficientemente para se dedicar somente ao espiritual. Assim que isso acontecer, um estágio novo começará no desenvolvimento da alma humana, quando o homem será então dirigido internamente por uma intensa e profunda paixão ilimitada, como dirigiu seus esforços até agora na busca para a liberdade. E o romance de Lem, de acordo com minha compreensão, expressa precisamente a incapacidade do homem se concentrar em seu interior e os pontos de conflito entre a vida espiritual do homem e a aquisição objetiva do conhecimento. É um conflito que nunca proporciona ao homem a paz integral, enquanto a liberdade externa não for conquistada de forma plena. Nós podemos chamar esta liberdade de liberdade social, a liberdade do indivíduo social, que não é necessariamente o pão, o alimento, um teto, ou suas crianças futuras. A humanidade não se move para frente sincronicamente. Ela para e recomeça, continua em sentidos diferentes. E somente quando as descobertas científicas ocorrem no curso do desenvolvimento tecnológico há um pulo correspondente no desenvolvimento moral do homem. Há uma coesão extraordinária entre os dois. Este era o problema que me perseguiu a todo momento quando eu trabalhava no filme. Simplificando, a história do relacionamento de Hari com Kelvin é a história do relacionamento entre o homem e a sua própria consciência. É sobre o interesse do homem por seu próprio espírito, quando não tem nenhuma possibilidade de fazer qualquer coisa sobre ele, quando está perdido na exploração e no desenvolvimento da tecnologia.
ZP: E qual é o resultado do conflito entre Kelvin e sua consciência?
AT: Em Kelvin está simbolizado o “perdedor”, porque tenta reviver sua vida sem repetir o erro que fez na terra. Tenta reavivar a mesma situação, porque tem uma consciência pesada, porque se sente culpado por um crime, e tenta mudar interiormente em relação a Hari. Mas não se esforça. Seu relacionamento termina como aconteceu na terra, a segunda Hari também comete o suicídio. Porém, se Kelvin pudesse reviver diferentemente este estágio de sua vida, não seria culpado na primeira vez. E usa a razão para que sua inabilidade se efetive nesta segunda vida com Hari. Realiza o que não é possível. Se fosse, então seria possível apertar o botão deste microfone que está gravando nossa conversa, voltar a fita e apagar tudo o que foi gravado, começando novamente como se nada tivesse ocorrido. E então os conceitos, assim como a vida espiritual, a consciência e a moralidade, não teriam nenhum significado.
ZP: Isso tudo não deixa um ar pessimista ao final do filme?
AT: A película termina com o que é o mais precioso para uma pessoa, e ao mesmo tempo a coisa mais simples de tudo, disponível a todos: relacionamentos humanos ordinários, que são o ponto inicial da viagem infinita do homem. Apesar de tudo, essa viagem começou para preservar intacta, protegendo os sentimentos que cada pessoa experimenta: o amor de sua própria terra, o amor daqueles que o rodeiam, daqueles que o trouxeram ao mundo, o amor de seu passado, do que sempre foi e é ainda caro a você. O fato que o oceano trouxe para fora de suas profundidades a coisa verdadeira, e que era a mais importante para ele – seu sonho de retorno à terra – que é, a ideia do contato. Contatar no sentido de “humano”, no sentido de “fazer bem”. Para mim, o final é o retorno de Kelvin ao berço, a sua origem, que não pode nunca ser esquecida. E é mais importante porque tinha viajado assim, distante, ao longo da estrada do progresso tecnológico, no processo de adquirir o conhecimento.
ZP: Você acha que Lem ficou satisfeito com seu filme?
AT: Eu não quis causar grandes expectativas em Lem. É uma pessoa cuja opinião eu respeito muito, eu admiro seu talento e seu intelecto. Eu sou muito afeiçoado ao filme, e extremamente grato a Lem por permitir que eu o faça. Porém, a respeito do que Lem acha sobre o filme, eu não penso que se ofenderá ou se irritará com a película, ou achará que foi mal feita, ou com falta de sinceridade, ou com falta de profissionalismo. Até agora, eu não sinto que o decepcionei. Eu estou certo que gostará de Hari.
(...)
* Reprodução de trechos da entrevista realizada em 1973. Tradução da versão em inglês publicada em: Andrei Tarkovsky, Time with time: the diaries 1970-1986 (trad. Kitty Hunter-Blair, Calcutta, Seagull Books Private, 1991), pp. 362-6. A tradução para o português foi retirada do blog http://cinestesis.blogspot.com; a entrevista original pode ser encontrada AQUI.
[1]. Stanislaw Lem, escritor polonês, nasceu em Lwów, em 12 de setembro de 1921, e faleceu na Cracóvia, em 27 de março de 2006.
(imagem: AQUI)
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