Projeto Portal foi uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa durante os anos de 2008 e 2010. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — foi distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Seis números (de papel e tinta, não online). O título de cada revista homenageou uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit.


Idealização: Nelson de Oliveira | Projeto gráfico e diagramação: Teo Adorno
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Leonardo Vidal comenta os contos de Brontops Baruq publicados no Portal Fundação

O stream of cousciousness, técnica de desfilar pensamentos sem muita organização ou método, geralmente feita sem pontuação ou parágrafos, sem cuidado formal e de forma corrida, tentando fazer com que os dedos captem o pensamento do autor, ou a maior parte, tem seus altos e baixos e foi usada com sucesso por vários autores, Joyce e Garcia Márquez entre eles. No Outono do patriarca, Márquez chegou a fazer uns parágrafos (com rigor formal e bom senso na pontuação como nunca havia visto antes por autor nenhum) de 42 páginas, na edição que eu tinha (é, eu contei). Ulisses, de Joyce, é todo feito nessa técnica, são páginas e páginas com os pensamentos do protagonista em uma jornada épica cheia de paralelos com o clássico grego. Sem pontuação. Brincadeira corrente entre os amigos era que pelo menos não se precisava de um marcador de páginas, podia-se ler onde se abrisse o livro e sair da leitura igualmente confuso.

A questão é: vale a pena usar esse método? Em que grau? No texto normal (existe?) os parágrafos servem para dar uma pausa na leitura. Concluir pensamentos, indicar uma reviravolta ou marcar momentos importantes do texto. É guiar o leitor de forma um pouco mais segura. O stream of consciousness aos poucos leva o leitor a uma leitura rápida, ofegante, ansiosa pelo próximo porto seguro de um parágrafo, onde as frases são mais intuídas e menos lidas. Comparemos o leitor a um cego em uma rua movimentada: a pontuação formal orienta esse cego hipotético pelo braço, ele se sente seguro, certo de que atingirá o seu objetivo. O stream of consciousness larga o ceguinho no meio da rua, coitado, e este tem de se virar para achar seu caminho, toda palavra é um obstáculo a ser vencido, o sentido se formando a partir da leitura total, não construído logicamente, parte a parte.

Qual o sentido então, irmão meu, de se usar o stream of consciousness? Confundir o leitor? Fazer com que parte do texto passe em branco, construído só pelo sentido geral? Bão, aí é que a coisa pega: nem todo stream é confuso, existem jeitos e jeitos, gradações e construções. O stream tem a vantagem de mexer com a percepção do leitor, poder colocá-lo em determinado estado emocional (confuso ou angustiado são dois usos freqüentes), assim preparando-o para o próximo passo do texto. Dá ao autor o controle (ou a ilusão de controle) da reação emocional do leitor ao texto. Palavras emocionalmente carregadas podem tornar marcante certo trecho importante da trama, ou esconder a importância de um fato narrado como corriqueiro (o bom mistério é aquele que é revelado ao leitor só no final do livro).

Os contos Sésamo, bananas & kung-fu e Hipocampo usam essa técnica de forma igual (a falta de parágrafos), mas que suscitam leituras variadas: o primeiro passa uma sensação de rápida sucessão de fatos, uma evolução vertiginosa da tecnologia de teleporte apresentada pelo conto, e suas conseqüências, até que acontece o desfecho e o impasse, e, então, o aprofundamento da trama, quando o leitor aprende a origem extraterrestre da tecnologia e a trama se complica com a inserção de novos elementos. O que meio que quebra a leitura e força o leitor a ver o conto com outros olhos, e a história se transforma: é, agora, sobre alienígenas que viviam entre nós e resolveram partir porque a forma de transporte quebrou. E daí um deles decide ficar por gostar das coisas daqui, o que dá o título do conto.

Em Hipocampo temos o stream clássico, o fluxo de pensamento do protagonista que tenta recordar e entender as conseqüências de um... arram... embate amoroso com uma parceira que acabou se provando diferente do esperado. Tipo... espécie errada. A parceira seria uma alienígena que planta um ovo dentro do corpo do parceiro e o faz esquecer disso através de uma manipulação da área do cérebro chamada hipocampo, responsável pela memória. Sei, sei. “Daí o título do conto.” Mas há também outra dança de significados sob a superfície da trama, onde hipocampo é também o cavalo-marinho, espécie em que o macho cria o filhote em uma bolsa no ventre, à semelhança do canguru. O que talvez também esconda uma resposta à questão que o protagonista se põe, sobre a forma como o embrião, acabada a gestação, irá eclodir. Significados sobre significados, a linguagem às vezes elaborada às vezes brincalhona, tudo leva o leitor com maestria a um ponto de dúvida, à sensação de que ficou com a obrigação de responder à grande questão que, uma vez posta, é ignorada pelo protagonista, que se preocupa com novas conquistas sexuais.

Figuram entre os melhores contos do livro, que é bem eclético em sua seleção de estilos mas mostra certos desníveis na qualidade da prosa: certos contos não se desfraldam, não se realizam. No entanto, há diversos momentos surpreendentes, como a ficção de Ataíde Tartari e Laura Fuentes, Luiz Bras e Mustafá Ali Kanso.

O que poderia ser observado em relação aos contos seria a quebra em Sésamo, bananas & kung-fu, cuja leitura talvez (e isso é um talvez) pudesse ser melhorada com a mudança do stream para outra técnica narrativa na mudança de foco do conto, e o fato de um conhecimento prévio das peculiaridades da biologia do cavalo-marinho ser necessário para que o leitor perceba a multiplicidade de leituras possíveis em Hipocampo.

História com desenho e diálogo é outro assunto, completamente diferente. A história é contada de forma criativa e inovadora, com as descrições de desenhos infantis no suposto caderno e as anotações da criança, que são ricas em referências (tartaruga Donatelo, cadela Baleia, Chico Buarque e Stones, mais umas quantas) e trazem até mesmo um ponto que não é desenvolvido na narrativa (o da mineira), como um diário de criança poderia muito bem trazer. As descrições feitas de forma impessoal contrabalançam a fala infantil, e a descrição do caderno feita antes do conto começar é a preparação que o leitor necessitaria para afundar na história, não fosse um porém: à medida que o leitor avança na leitura do conto começa a sensação de que a fala da criança acaba por esclarecer todos os pontos necessários para um perfeito entendimento do texto, apresenta cada um dos personagens, capta momentos poéticos como a melancolia do avô, se preocupa em descrever um sorriso importante para a narrativa. Há momentos ótimos, lúdicos, como a tentativa infantil de descrever a “luz verde” ou referir-se a “Vovôvovó” quando os avós estão juntos. Mas a leitura total é a de que a fala infantil é muito certinha, muito fechada com a trama, para ser autêntica, impressão essa que nem a genial tirada do final da história (a da mineira, de novo) nem a também genial suspeita da autenticidade do caderno, aplacam por completo.

Faltou alguma coisa? Faltou o desnecessário, o trivial, faltou o ininteligível. Agora, é um paradoxo, isso de faltar o desnecessário?

Leonardo Vidal (também conhecido como InVinoVeritas)
http://invinoveritasnews.blogspot.com


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