Projeto Portal foi uma revista de contos de ficção científica com periodicidade semestral, editada no sistema de cooperativa durante os anos de 2008 e 2010. A pequena tiragem — duzentos exemplares de cada número — foi distribuída entre acadêmicos, jornalistas e formadores de opinião. Seis números (de papel e tinta, não online). O título de cada revista homenageou uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit.


Idealização: Nelson de Oliveira | Projeto gráfico e diagramação: Teo Adorno
Revisão: Mirtes Leal e Ivan Hegenberg | Impressão: LGE Editora

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Retroperspectiva

A maioria absoluta de obras pertencentes à ficção científica brasileira é constituída de FC fronteiriça - fato que apenas Braulio Tavares (em seu texto sobre o Brasil na The Encyclopedia of Science Fiction, edição de 1993) e mais um ou outro parecem se dar conta. Afinal, toda a FC brasileira escrita antes de pioneiros como Berilo Neves e Jerônymo Monteiro, e os nomes ajambrados em torno das Edições GRD na década de 1960, eram escritores mainstream escrevendo ficção científica. Muitos, como Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Orígenes Lessa, Guimarães Rosa, etc., tiveram uma aventura dentro do gênero, e logo se esqueceram dele. Depois da década de 1970, mais da metade da produção nacional continuou sendo fronteiriça, embora tenham surgido novos autores propriamente dedicados ao gênero.

Essa constatação talvez seja o segredo mais bem guardado dentro da comunidade brasileira de FC - autores e fãs dedicados e freqüentemente obsessivos, com dificuldade em enxergar que a maior parte do que fizemos até aqui não surgiu do seio do fandom, que permanece invisível e irrelevante a esses autores mainstream que se aventuraram ou ainda visitam o gênero. Não é de estranhar, portanto, que o olhar dos fãs seja mais lateral do que em profundidade e sob um prisma histórico: o produzido no exterior por escritores não-fronteiriços é que fornece a medida.

É claro que, perante a evolução da FC e diante dos padrões dos seus leitores habituais, ficção científica fronteiriça pode ser sinônimo de ficção científica inconsistente - ou simplesmente falsa FC, na visão dos fãs mais hardcore, que têm dificuldade em aceitar tais obras como pertencentes ao gênero. (Borderline também pode indicar obras fronteiriças entre a FC e a fantasia, mas não é esse o sentido que exploro aqui.)

De qualquer forma, o projeto Portal, do renomado escritor mainstream Nelson de Oliveira, pode ser um novo meio de confrontar a comunidade brasileira de FC com essa realidade embaraçosa.

Oliveira se volta para a FC depois de ter sido bem-sucedido em sua intervenção junto ao mainstream, chamando a atenção da crítica e dos leitores para a "Geração 90" de ficcionistas brasileiros (alguns deles, escritores "fronteiriços" como João Batista Melo e Fausto Fawcett). O projeto Portal é uma revista de tiragem pequena (240 exemplares) que mistura em suas páginas autores de gênero e escritores mainstream, todos voltados para, por orientação de Oliveira, a escrita de contos de ficção científica. Cada edição (ela não é numerada) faz a homenagem, em seu título, a uma obra clássica da FC internacional. As duas edições lançadas até agora são Portal Solaris e Portal Neuromancer.

Fisicamente a revista é simples mas bem diagramada, miolo em off-set e capa em cartão. Os contos tendem a ser relativamente curtos, e às vezes temos mais de uma história por um mesmo autor. As capas são de Teo Adorno.

Em Portal Solaris, Ataíde Tartari, veterano do campo da FC no Brasil, contribui com "Valentim", FC ufológica em que uma enfermeira suburbana ajuda um alienígena sob custódia da FAB a fugir e passar um tempo com ela. É uma comédia centrada no modo como a enfermeira privilegia a paixão e deixa passar o que há de estranho no seu "namorado". O conto, homenagem a Estranho numa Terra Estranha (1961), de Robert A. Heinlein, termina com um toque de Starman e tem como principal efeito a reprodução da "voz" da protagonista, numa FC fronteiriça com a assim-chamada (em inglês) chick-lit. Outra FC ufológica - que tem certa "tradição fronteiriça" no Brasil - está em Portal Neuromancer: "Missão Especial", de J.P. Balbino, sobre operação da marinha brasileira para abordar um OVNI sinistrado no mar. A história é movimentada e tenta ser pulp no andamento rápido, mas os detalhes específicos revelam que o autor nada sabe do ofício dos seus personagens, e não se preocupou em pesquisar (mesmo na Era Google). Resultado: inconsistência.

Tartari também está em PN, com "O Triângulo de Einstein", sobre triângulo amoroso em uma nave que viaja em velocidades relativísticas. Os tripulantes são um casal cujo relacionamento se complica quando o efeito relativístico faz surgir uma garota das relações anteriores do homem(supõe-se que materializada da psique do personagem, como em Solaris, de Stanislaw Lem). O ciúme se estabelece, levando a um final duplamente trágico. Mas o que é virtude em um conto - o registro coloquial - é prejuízo no outro, pois este falha no tom necessário para amparar seu teor trágico.

"A Nova Ordem das Coisas", de Mayrant Gallo (em PS), faz homenagem, no nome dos personagens, a autores como Karel Capek e Arthur Clarke. Um criado, em seu segundo ano a serviço de uma família que mora numa ilha, é encarregado de se livrar de um ninho de marimbondos - metáfora do seu envolvimento com a família: mexer em ninho de marimbondos, que ele, não obstante, controla sem grandes dificuldades. O sexo é a tônica, permitido pelo chefe da família para testar o andróide da sua firma (o criado). Em resenha da revista (http://diplo.uol.com.br/2008-08,a2563), Fábio Fernandes, outro veterano do gênero, já havia associado o conto ao filme Teorema (1968), de Píer Paolo Pasolini. O próprio Fernandes explora o cinema em "Director's Cut"(PN), homenageando o fã histórico José Sanz e o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, num enredo reminiscente dos episódios da série Além da Imaginação (1959-1964) - para a qual escreveram grandes nomes da FC americana. No conto, filmes clássicos de uma realidade alternativa caem nas mãos dos dois especialistas brasileiros, por intervenção de um homem que transita entre os universos paralelos. Desse modo, cinema de arte e a FC popular televisiva são representados, como inspiração. O conto de Gallo é muito bem escrito, pecando pelo final abrupto; o de Fernandes é mais equilibrado, mas com um estilo meio morno - com algo de típico do autor: é parte comentário metalingüístico, parte exploração pós-modernista dos clichês do gênero.

Carlos Emílio C. Lima está em PS com "Os Gims" e "O Iluminador". Ele escreveu o interessantíssimo "O Luvibórix" (publicado recentemente na antologia Palavras de Sombra, de Braulio Tavares), e estes dois também são interessantes, mas em menor escala. O primeiro trata de uma mulher que, por tradição familiar numa região interiorana do Brasil, recebe estranhos homens de olhos arregalados, que pedem sua ajuda. Ao reter esses homens, que se desfazem num estranho processo de petrificação, ela salva a Terra do fim. Enigmático e elíptico, não fornece razões, apenas imagens que assombram. O segundo é ambientado em futuro distante no qual muita gente vive na Lua e a Terra está transformada. O narrador tem um amante gay, que vive no fundo do mar. Menos enigmático, tem certa aura cósmica que ecoa a imagem central de amor na solidão e na separação.

FC com temática homossexual é rara e quase exclusivamente fronteiriça com o mainstream - como o romance Jogo Terminal (1988), de Floro Freitas de Andrade. "Uma Vez no Céu Escuro e Brilhante" (PN), de Lima Trindade, cria um futuro em que o amor e o sexo foram substituídos por meios tecnológicos. O autor brinca com os clichês de uma FC juvenil - tendo como contraponto o tema adulto do flerte gay entre dois personagens. Sem dúvida, o sexo reprodutivo pode acabar no futuro, mas não o sexo gay! O outro conto do autor, também em PN, "Fim de Linha", é mais uma narrativa na tradição de Além da Imaginação, em que um jovem desempregado pega um ônibus que o deixa fora do mundo - outra dimensão física ou além da morte.

Os dois contos de Geraldo Lima em PS são por demais enigmáticos, mas o impresso em PN, "Aquela Claridade Intensa Turvou-lhe a Razão", é um conto bem conduzido e que alguns talvez chamassem de New Weird: um paciente mental revela ao seu médico que no subsolo de Brasília haveria uma enorme cidade futurista, construída com a exploração do trabalho de pessoas capturadas na superfície. Uma imagem singular, especialmente por se associar ao contexto da construção de Brasília - com alto custo social, assinalando a exploração ou opressão do trabalhador, e trazendo o passado para o presente. O estilo tem algo de Lovecraft, a narrativa é sofisticada, mas a caracterização do psiquiatra que atende o personagem deixa a desejar.

Um autor que se apresenta como de "ficção estranha" (weird fiction) é Jacques Barcia, co-editor (com Fernandes) do fanzine em PDF Terra Incógnita, plataforma do New Weird no Brasil. Seus dois contos em PN parecem pouco característicos. "Meu Nome É Interno" trata de um prisioneiro, condenado por pirataria onírica a uma prisão na cidade de Porto Maya, onde tudo pode ser ilusão. O estranhamento é comunicado por uma prosa poética muito bem realizada. Mais para o mainstream do que o weird originário das páginas de Weird Tales. O outro, "Pequeno Punho de Outono", é fantasia oriental e mistura pós-modernista de algum budismo com artes marciais do tipo filme de kung fu de Hong Kong.

Barcia é um dos nomes vinculados à Terceira Onda da FC Brasileira. Outro é Ana Cristina Rodrigues, autora do recém-lançado livro de contos Anacrônicas, e que está em PN com "O Templo do Amor". Alto tautológico, trata de um matador profissional que toma drogas para reprimir seus sentimentos pela amada que ele é pago para matar - e no processo se encaminha para um abraço de viúva negra. Na mesma revista, uma jovem assassina enfrenta um teste de sobrevivência em "Concha do Mar", de Roberto de Sousa causo, um escritor da Segunda Onda.

Carlos Ribeiro, autor do romance Abismo (2004), aparece em PS com "O Fugitivo dos Sonhos", texto algo pesado que trata de um cientista às voltas com experimentos oníricos que sublinham a inconstância e a imponderabilidade do real. O cientista manda sua cobaia humana ler Lovecraft, Bradbury, Conan Doyle e Wells para "acessar o lado direito do cérebro" e abrir as portas da percepção.

A fragmentação pós-modernista está bem presentificada em contos como "O Livro Azul-Turquesa", de Homero Gomes (PS), e "O Mundo Desencantado de Desseres" (PS) e "A Máquina" (PN), de Rogers Silva. Este último também agrega a metaficção e efeitos onomatopéicos, ao tratar de uma máquina do tempo que permite ao usuário enxergar os fatos pelo ponto de vista de outra pessoa ou ser (até mesmo uma pulga), numa trama que envolve as causas da Segunda Guerra Mundial. Como "Rogers Silva" é um pseudônimo, as coisas são ainda mais complicadas em seus significados, com a presença dele e do autor que ele representa, no texto. O mesmo se dá com "A Última Revolta de Jesus Cristo" (PS), em que pseudônimo dedica o conto ao autor.

Outro pseudônimo exercido nas duas revistas é "Luiz Bras". O seu "Memórias" (PS) privilegia os diálogos e é exemplo do atual fascínio do mainstream brasileiro pelo crime urbano. Uma mulher mantém refém a própria família, que ela não reconhece. Não é a primeira vez que isso ocorre, e tais eventos se conectam com um par de estudantes que estariam conduzindo experimentos com a memória. O efeito formal mais interessante é a fusão de dois segmentos da ação, num mesmo parágrafo. Do mesmo autor, "Aço contra Osso" (PN) é mais interessante: um homem caça um "clone" seu, em realidade virtual que se comporta como um videogame de vários estágios. Ele precisa resolver as equações que controlam cada estágio, para aprisionar o clone - que controla o destino de sua mulher e filha. A conclusão é inesperada e contundente, e o andamento do conto lembra aqueles de Braulio Tavares em A Espinha Dorsal da Memória (1989), histórias que, enquanto parecem fugir da narrativa convencional tão comum ao gênero, apóiam-se no leitor habitual de FC, que conhece o suficiente de suas convenções e imagens para se situar dentro da narrativa elíptica. De um pseudônimo a outro, parabéns.

Ivan Hegenberg, autor do romance Será (2008), tem dois contos em PS. Um deles, "Dia Qualquer", é outra exploração de virtualidade, em torno da intrusão de detalhes estranhos nas situações cotidianas do Sr. V, ser virtual testado por uma empresa governamental. Inadvertidamente, Carina, uma funcionária dessa empresa, envolve-se com ele, perdendo a noção do que é real ou virtual. O conto é um tanto desequilibrado, mas funciona especialmente como crítica a uma desumanização da vida.

Em PN, "Trekkers", de Tiago Araújo, e desenvolve quase que exclusivamente como diálogos entre um grupo de andarilhos (o conto nada tem a ver com os fãs de Star Trek), rumo a um final surpresa. Por outro lado, "Processador Central", de Marco Antônio de Araújo Bueno, é um longo monólogo que embute não apenas diálogos do narrador com uma certa Liza, mas também alguns elementos de FC num outro enredo enovelado sobre sonhos - e a interpretação psicanalítica de sonhos. Bueno tem quatro textos curtos em PN, bastante herméticos, fragmentados mas expressivos e eruditos.

Nas duas revistas, são trinta contos no total, o que deixa claro que não pude comentar todos. O projeto prossegue em bases semestrais, com o lançamento programado de mais quatro portais: Stalker, Fundação, 2001 e Farenheit. Seu objetivo é chamar a atenção, junto ao mainstream, para a FC; e junto ao fandom, para o mainstream. Afinal, por um portal passa gente dos dois lados, e essa mistura - com todas as questões literárias que carrega - pode muito bem ser o grande mérito deste projeto de Nelson de Oliveira.

*Jeremias Moranu é autor de A Deusa do Amor, romance fronteiriço entre fantasia e softporn.


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